Aqueles que de há muitos anos determinam a política de turismo em Portugal vêem-me como um crónico inimigo. De facto, sou: nunca me cansei de denunciar as barbáries cometidas em nome do turismo, particularmente na costa alentejana e Algarve - o que melhor conheço - e de questionar o que, contas feitas, o país ganha com as suas políticas e o que poderia ganhar com outras. Paulatinamente, fui vendo destruir terras magníficas, como Sesimbra, Vila Nova de Milfontes, Porto Covo, Lagos, Portimão, Armação de Pêra, Carvoeiro, Albufeira - isto para não passar além do norte do Tejo e falar de coisas que vão de Cascais, esse crime sem castigo, até Caminha. Da fronteira do Minho à do Guadiana acho que as minhas razões de revolta estão à vista de todos e, se tenho poucas dúvidas de que o país pouco ganhou em troca do muito que perdeu, não tenho dúvidas algumas de que muitos saíram a ganhar, e bem, de trinta anos de vandalismo pseudo-turístico.
O meu inimigo não é o turismo: é este tipo de turismo predador, que consome os recursos naturais de um país até à exaustão e a seguir muda-se para outro. Confesso, porém, que não é sem uma profunda nostalgia que me rendo à inevitabilidade do turismo de massas que, democratizando as viagens, matou de vez a própria ideia de viagem. Quando, hoje em dia, temos de marcar hora para visitar os Uffizi com três dias de antecedência, porque há milhares de turistas à espera de vez e para quem é rigorosamente indiferente perceber porque é que o Giotto descobriu a profundidade de campo ou porque é que um Botticelli é imediatamente reconhecível, não posso deixar de me interrogar se o objectivo do turismo cultural, por exemplo, é ser o destino de todos ou daqueles que são capazes de o ver com olhos de ver. Todavia, o que não tem remédio, remediado está. O turismo de massas é hoje uma conquista universal dos povos e uma fonte de receitas para os países recipiendos. Só que há formas e formas de gerir esta realidade, sem o que não faria sentido falarmos de políticas de turismo. Em Portugal, de há trinta anos para cá, a única política detectável a olho nu é a da quantidade: quantos mais turistas - em hotéis, aldeamentos, vivendas, pendurados nas dunas ou nas falésias - melhor para o país. Verdade? Não, mentira redonda, que os números, aliás, facilmente revelam: dez vezes mais turistas do que há trinta anos representam praticamente o mesmo volume actualizado de divisas do que então. Porque quanto maior é a quantidade, pior é a qualidade e mais baratos têm de ser os preços. E hoje, quando destinos inacessíveis até há poucos anos são alcançáveis a preços de saldo na net, as supostas praias desertas do Algarve (referência obrigatória de qualquer campanha de promoção no estrangeiro) cada vez irão convencer menos incautos. Basta, aliás, atentar no próprio exemplo dos portugueses, que em número galopante todos os anos vêm trocando o Algarve pelo Brasil.
Tudo isto é óbvio, pacífico e lógico. E, se não mudamos de política, se não parecemos capazes de compreender que a solução não é a fuga em frente, nem a construção até ao último metro quadrado disponível de dunas ou de falésia, é porque a turma que determina a política de turismo é notoriamente incompetente e está enredada numa teia de interesses cruzados entre os promotores turísticos, os autarcas e os financiadores locais dos partidos políticos. Enquanto a coisa não rebentar de exaustão e houver ainda dinheiro a ganhar, eles não mudarão de estratégia - mesmo que para tal exijam, como os autarcas algarvios, que não haja planos de ordenamento nem regras de contenção, «inimigas do desenvolvimento».
A primeira coisa a fazer seria tornar letra de lei uma promessa constante do programa eleitoral do actual Governo: mudar o sistema de financiamento das autarquias, desligando as receitas das autorizações de construção, de modo a que não sejam mais ricas as Câmaras que tudo permitem e tudo vandalizam. A segunda coisa, seria tornar os planos dependentes daquilo a que se chama «crescimento sustentado» (quer fazer um campo de golfe? Muito bem, pode ser útil para a terra e para o turismo. Mas de onde vem a água, é reaproveitada ou é nova? Situa-se em zona de Reserva Ecológica ou Agrícola, contaminando os solos, com os fertilizantes e químicos utilizados? Quer fazer uma urbanização nesta praia? Muito bem, vamos ver: quantas pessoas comporta a praia, não estará já saturada? E a rede eléctrica aguenta? E os esgotos, como serão tratados? E a rede municipal de estradas, o estacionamento, o hospital local, estão preparados para absorver mais quinhentas pessoas?). A terceira coisa seria pôr fim a essa descoberta jurídica feita nos últimos dias de mandato de um secretário de Estado de um anterior Governo, chamada «projectos estruturantes» (hoje rebaptizados de «interesse nacional»), e por meio da qual se reprime o pequeno crime urbanístico e se incentiva o grande crime. E a quarta medida seria liquidar igualmente outro expediente jurídico chamado «deferimento tácito» administrativo para as autorizações de construção, que deu origem a esses milhares de «direitos adquiridos» sobre a paisagem do país, fazendo as delícias de construtores, advogados e juristas e permitindo a governantes e autarcas exclamar com ar compungido que «é uma pena, mas não há nada a fazer!». Quatro simples medidas legislativas: apenas isto e todo o cenário mudaria. Poderíamos deter a caminhada para o abismo, poderíamos salvar o pouco que ainda resta, poderíamos tornar a indústria turística dependente da qualidade, da inovação e da iniciativa e não mais da especulação, da destruição e da corrupção. Por que é que não as tomam? Porque isso iria mexer com todo o sistema oculto instalado. Os juízes teriam que se dar ao incómodo de fazer justiça e meditar sobre o conflito de direitos entre os direitos da comunidade e os de alguns. Os advogados e os sempre disponíveis jurisconsultos iriam gritar que o Estado de Direito estava ameaçado. Os funcionários do Turismo iriam sentir que o mundo lhes desabava aos pés. Os autarcas marchariam sobre S. Bento, contra o «centralismo» e os «inimigos do desenvolvimento». Os financiadores locais e nacionais dos partidos iriam bater à porta dos ministros e deputados a perguntar se tinham endoidecido. As populações manifestariam também a sua indignação, convencidas de que, sem mais mamarrachos à beira-mar, não haveria centros de terceira idade nem lindas rotundas com estátuas pós-modernistas da autoria da cunhada do primo do presidente da Câmara. E não faltariam jornalistas «sensibilizados» para a causa do «país profundo». E todos, afinal, desaguariam na eterna e lúcida exigência: «Venha a regionalização, que não aguentamos mais a ditadura do Terreiro do Paço!» E você, leitor, o que prefere: esta «ditadura» ou a «democracia» deles?
in jornal 'Expresso' de 6 de Maio
in jornal 'Expresso' de 6 de Maio
Um comentário:
Agora, que "plantaram" dezenas de vacas em diversos locais turísticos de Lisboa porque não pôr lá, também os bois? Ou, pelo menos, as fotografias deles.
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